musealizar o que há de bom

O museólogo tcheco Zbynek Stránský cunhou dois termos fundamentais para pensar a prática museológica: musealização e musealidade. Musealizar, segundo ele, é o processo de transferir algo de seu contexto original para o contexto museológico. Já musealidade é a qualidade ou o valor que faz com que esse objeto mereça ser musealizado. Em outras palavras, musealizar é o ato de reconhecer, atribuir e comunicar valor.

Esse gesto, aparentemente técnico, revela algo profundo. O objeto em si não muda — continua sendo madeira, tecido, pedra ou papel. Mas, ao ser reconhecido, nomeado e interpretado, ele passa a carregar outro peso simbólico, tornando-se patrimônio. É justamente aí que mora tanto a potência quanto a fragilidade do museu: o poder de fazer comum o que antes era singular, de transformar usos e sentidos cotidianos em narrativa cultural.

Historicamente, os museus assumiram o papel de guardiões da cultura. Mas esse mesmo gesto de mediação gerou também uma distância entre os objetos e as pessoas. Ao institucionalizar o valor, muitas vezes os museus retiraram das comunidades o direito de continuar sendo autoras de seus próprios significados. O resultado é um processo de alienação: objetos passam a ser vistos como “propriedade cultural” universal, mas não como extensão viva das pessoas que lhes deram origem.

Essa crítica, levantada por diversos teóricos, expõe um dilema: se as funções prímárias do museu se estruturam no tripé preservação—investigação—comunicação (Van Mensch), como sustentar um diálogo que não seja apenas monólogo institucional? Como reconhecer que a cultura não é só herança do passado, mas também produção viva e cotidiana, presente nas ações, nas palavras, nas imagens e nos encontros que cada pessoa cria e compartilha?

Se ampliarmos esse raciocínio para além das paredes do museu, veremos que musealizar pode ser entendido como um ato humano mais amplo: valorizar. Não apenas objetos, mas pessoas, relações, memórias, experiências. Vale lembrar que a palavra museu, na mitologia grega, vem de museion, o templo das musas, entidades que inspiram criações artísticas e científicas. Musealizar, nesse sentido, não seria o privilégio de uma instituição, mas uma prática social e pessoal que nos convida a ver a musa no outro, reconhecer a musa em nós mesmos e despertar o seu valor.

Valorizar é resistir à lógica da obsolescência e do descarte. É afirmar que cada pessoa, cada percurso, cada expressão têm significado. É compreender que a memória não é apenas acúmulo, mas também inspiração, criação e transformação. Como diria Weil, é oferecer não apenas informação, mas também estímulo e empoderamento — fazer da experiência não um ponto final, mas um início.

Mas como querer musealizar o que há de bom sem primeiro reconhecê-lo, valorizá-lo e partilhá-lo?

Em minha prática, tenho buscado explorar justamente essa fronteira entre o institucional e o íntimo. Como transformar encontros cotidianos em experiências de musealização? Como criar situações em que valorizar seja o próprio gesto criativo?

Essa busca se manifesta em projetos de naturezas distintas. Em iniciativas experimentais, como quando fotografia e gastronomia se encontraram no PhotoGourmet. Em investigações de redes interculturais, como no Nucleus. Ou ainda, em encontros simbólicos e afetivos em torno do diálogo com a arte, como em El Aperitivo.

Com o tempo, essa mesma busca se ampliou. Ganhou corpo em trabalhos ligados a arquivos, em projetos com comunidades, em processos urbanos e, mais recentemente, em práticas védicas — que priorizam o autoconhecimento e, portanto, o reconhecimento de si e do outro.

Em todos eles, o que se procura é o mesmo: comunicar valor, despertar a musa e tecer pertencimento. Isso se concretiza ao revisitar memórias, ao fortalecer laços coletivos, ao ressignificar territórios ou ao propor novos modos de viver a cultura em comum.

O desafio que o humano atravessa é relacional. A teia, o laço do pertencimento está cada vez mais frágil porque a musa adormecida não reconhece valor. É preciso reconhecer mais, valorizar mais, permitir que as musas se encontrem livres das pequenas tiranias da inveja ou da disputa por poder. Só assim podemos sustentar vínculos verdadeiros, abertos e criativos.

Musealizar, afinal, é aprender a tornar significativo. E talvez esse seja o maior desafio e também a maior promessa da museologia contemporânea: não apenas preservar o que fomos, mas inspirar o que podemos vir a ser: agora mesmo, e no futuro.

fotografia de Fernanda Curi, Pinacoteca de São Paulo, 2024.

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