arquivar para pertencer

Nos Vedas, a memória (smṛti) é compreendida como um campo sutil da consciência. Mais do que um repositório de lembranças, ela guarda impressões profundas (saṁskāras) que atravessam o tempo, moldam os vínculos e sustentam a continuidade da experiência. Arquivar, sob essa luz, não é apenas conservar registros: é cuidar do que nos constitui, do que nos conecta, do que pode ser lembrado — e, mais importante, trazido de volta à vida.

Talvez seja por isso que, ao longo da vida, tenho me dedicado a buscar tesouros escondidos – no mundo e nas pessoas. Não apenas aqueles que se trancam em cofres ou permanecem esquecidos em domínios institucionais, mas também aqueles que se revelam na experiência, na memória, nas histórias de vida — e no que reconhecemos como o nosso verdadeiro ser. Tesouros que precisam circular — não como mercadoria, mas como elementos de uma potência coletiva. 

Fazer arquivo é trazer à tona essas camadas subterrâneas da existência: escavar com atenção, nomear com cuidado e permitir que fragmentos esquecidos ou silenciados respirem novamente – despertando e deslocando posições adormecidas. Nesse sentido, mais do que arquivamento, penso em arquivação: um gesto ativo, processual, que retira o arquivo da imobilidade do acervo e o faz atravessar a vida, abrindo-se ao presente e ao futuro.

Essa busca por tesouros impulsiona o mundo, mas também aponta para dentro. Porque, assim como preservamos acervos e documentos, também somos guardiões de um acervo interior — o mapa sutil da alma, revelado por práticas como a astrologia védica. Nesse mapa, encontramos pistas sobre o nosso verdadeiro ser: vocações, padrões, aprendizados, potenciais. Um tesouro que, ao ser reconhecido, não deve ser guardado, mas honrado, compartilhado — expandido em direção à vida.

Mas isso não significa descuidar da materialidade – seja do corpo físico, seja do documento. Preservar textos, imagens, relatos e vestígios é reconhecer o valor do que foi vivido. É permitir que aquilo que parecia disperso reencontre forma — e que essa forma seja aberta, acessível e fértil. O arquivo, nesse sentido, não é estático, mas um fluxo, um movimento em espiral, não linear. Constrói-se no gesto de organizar, e se renova ao ser atravessado por novas leituras e significações.

Essa prática ganha sentido pleno quando envolve o coletivo. Um arquivo só encontra potência real quando sai do confinamento e se torna acessível e comum – quando serve para que comunidades se reconheçam, instituições se repensem, linguagens se transformem. O arquivo em movimento cria territórios de pertencimento, onde memória e criação caminham lado a lado, abrindo espaço para futuros imaginados.

Em muitos processos que venho desenvolvendo — tanto em instituições quanto em contextos comunitários e acadêmicos — o arquivo sempre se apresentou como um ponto de partida: não apenas para lembrar o que fomos, mas para imaginar o que podemos vir a ser. 

Arquivar para pertencer — e para fazer pertencer — é afirmar o valor político da escuta, a potência ética da memória e a beleza de construir junto, aquilo que, de outro modo, poderia se perder.

Num tempo em que persiste o apego ao que já foi — glórias, fórmulas, identidades cristalizadas — cultivar arquivos vivos e dinâmicos é uma forma de abrir caminhos para o porvir. Arquivar não como quem guarda, mas como quem semeia. Como quem reconhece o valor do que existe e confia que há tesouros ainda por emergir — tanto fora quanto dentro de nós.

fotografia de Leo Eloy/Fundação Bienal de São Paulo, Sarau na 30ª Bienal, 2012.

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