resgatar o humano

Escrever pode parecer um gesto pequeno diante de um mundo em colapso. Mas é também pausa, respiração — um intervalo onde as perguntas ganham fôlego antes de serem respondidas. Um lugar de travessia que conecta o íntimo ao coletivo, o passado ao que ainda está por vir. 

Vivemos tempos em que quase tudo nos empurra à funcionalidade. Tornamo-nos eficientes — e anestesiados. Dispersos, exaustos, fragmentados. A presença plena virou luxo. A escuta, exceção. O cuidado, invisível. 

Há pessoas que sustentam instituições, projetos, territórios inteiros com o corpo e com a alma — e, ainda assim, sentem-se sozinhas. Desvalorizadas. Desmotivadas. Cansadas de doar sem reciprocidade. Tornou-se mais fácil sobreviver no automatismo do que se implicar na escuta de si e do outro.

Profissionais das áreas sociais, educativas, culturais sustentam o mundo com empatia — mas respiram mal, ganham mal, vivem com pouco tempo e quase nenhum reconhecimento. Quem antes era movido pela vocação, pelo sonho, hoje se vê mergulhado no vazio, no esgotamento. 

E, ainda assim, o cuidado persiste. Porque há quem resiste e insiste em estar, ouvir, sustentar, em oferecer presença onde o mundo pede urgência.

Mas quem sustenta aquele que sustenta?

Quem reconhece o valor do gesto que não cabe numa planilha, mas constrói laço, confiança, vínculo? Quem se responsabiliza por cultivar o espaço comum — não como utopia, mas como prática diária?

O problema não é apenas técnico ou institucional. É relacional, é estrutural, é humano.

E por isso a resposta também precisa ser humana. Não se trata apenas de rever políticas ou métodos. Trata-se de reativar algo que tem se apagado em nós: a capacidade de reconhecer o outro como parte de nós mesmos, como parte de uma mesma engrenagem que sustenta a todos nós.

Há quem defenda o planeta ao mesmo tempo em que cultiva a guerra no seu próprio dia a dia. Há quem grite por justiça global enquanto julga sem piedade o colega ao lado. Mas lembremos que: não há possibilidade de bem comum onde não há laços; não há transformação coletiva sem transformação cotidiana de cada um.

Resgatar o humano é interromper a corrente do desânimo, do julgamento fácil, da indiferença. É sair do automatismo. É lembrar que toda ação — mesmo a menor — deixa marcas, faz marcas. E que o modo como tratamos o outro revela, antes de tudo, o que cultivamos e valorizamos em nós mesmos.

Resgatar o humano é lembrar que tudo está interligado: arquivos e astrologia; museus e silêncio interior; memória institucional e futuro comum; yoga e território; avaliações técnicas e escuta sensível; cuidar de pessoas e cuidar da cidade. 

É preciso reabilitar o vínculo, não como ideal romântico, mas como prática radical. Não basta defender grandes causas se esquecemos que o comum começa em casa — com o vizinho, o colega, o estranho.

Vínculos assim não se estabelecem por método, mas pela coerência na ação — que se revela na experiência, no tempo, na escuta, na partilha. São vínculos estabelecidos ao longo do processo, na construção, com cuidado e responsabilidade.

A responsabilidade, no seu sentido mais vital. é a habilidade de responder ao que nos atravessa, com presença. Não para carregar o mundo nas costas — mas para não virar as costas ao mundo. Não para salvar tudo — mas para reaprender a estar no seu lugar no mundo.

Esse resgate não é luxo: é necessidade. Um gesto de cuidado, de coragem, de reconstrução. É a reabilitação do afeto como força organizadora da vida.  A confiança de que algo bom ainda pode acontecer. Que não vivemos apenas para resistir a desgraça — mas para reencontrar a graça.

É preciso sorrir mais, sonhar mais, amar mais. Cultivar encantamento sem ingenuidade. Voltar a imaginar, criar— e não apenas reagir. Nem tudo se conecta por lógica. Mas tudo pede sentido. E esse sentido não está pronto: ele se constrói na relação. 

Resgatar o humano talvez seja o que nos reste —o que nos salve. E nesse gesto, retomar a ousadia de imaginar e experimentar uma outra forma de estar no mundo: mais viva, com mais abertura, leveza, generosidade…

E, quem sabe, com humildade, tempo, – e a coragem de continuar – possamos reaprender o que é o bem-viver.

fotografia de Fernanda Curi, Casa da Pertença, Porto, 2025.

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