entre gesto, pausa e porvir

Passamos a vida a remar.

Mesmo quando não há barco, nem rio à vista. Remamos no tempo, nas repetições, nas tentativas diárias de seguir. Remamos contra o cansaço, contra o silêncio, contra o medo de parar. E, às vezes, também remamos a favor — do vento, do acaso, do que simplesmente flui. 

Há dias em que o corpo pesa, e o ritmo parece escapar, mas é ali, no movimento repetido e renovado, que algo se ajusta. Remar é um modo de estar em relação com o lugar e o tempo — não como quem observa uma paisagem, mas como quem reconhece uma continuidade não linear.

O rio corta a península como uma veia antiga, lembrando que pertencer é também acompanhar o curso das coisas. O corpo aprende a escutar: o vento, a maré, as ondas deixadas por quem passa ao lado. Há dias de correnteza forte e dias de calma. Não é sobre vencer o rio, é sobre encontrar um ritmo que sustente o navegar — um compasso que devolve presença com respiração, força e pausa.

Quando se rema junto, quem está numa ponta indica a direção; quem está na outra imprime o ritmo, e, no meio, pode haver quem acompanhe e sustente. Um exercício de complementaridade. No fundo, ninguém rema sozinho, mesmo quando parece. Há sempre outro corpo, outro olhar, outro silêncio acompanhando o movimento.

A água se move dentro e fora de nós. Somos feitos de rios — de correntes de sangue, de memórias, de sentimentos. Há um fluxo que nos atravessa, formado também por gotas antigas, pelas experiências que vieram antes e seguem desaguando em nós. 

Thich Nhat Hanh escreveu “Você não é um ser isolado. Você é um fluxo, feito de continuidade.” O que chamamos de “eu” é apenas um instante do fluxo, um intervalo de passagem entre o que veio e o que virá. 

Por isso é preciso, às vezes, uma pausa no ato de remar, simplesmente estar presente. Observar o fluxo: o que chega, o que parte, o que se transforma, o que permanece.  Perceber, como também dizia Hanh, que há um rio de sentimentos em cada um de nós. A alegria e a dor passam como águas. Se estancam, viram mágoas.

De tempos em tempos, podemos ancorar na margem e nomear o que corre: isto é tristeza, isto é gratidão, isto é raiva, isto é paz. E apenas observar — sem nadar contra, sem se deixar levar. Nomear o que passa, reconhecer o que vem, e deixar ir, sabendo que tudo é impermanente.

Observar já é um modo de curar. Mas nem sempre é fácil ancorar devido à urgência da vida. Há dias em que o rio parece arrastar tudo, e a vontade é de remar até não sentir mais o corpo. Penso nas expressões que tanto usamos — remar contra a maré,  estar no mesmo barco, remar na mesma direção. Todas falam de persistência, convivência, de seguir tentando, mesmo quando o barco está furado.

E então lembro de Caio Fernando Abreu: “Olha, eu sei que o barco está furado, e sei que você também sabe, mas queria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar também.” 

Remar é insistir na vida, mesmo sabendo de suas rachaduras. É seguir, não por esperança de chegada, mas porque o movimento, em si, já é sentido. 

Talvez o segredo esteja em compreender que remar e ancorar/observar pertencem ao mesmo gesto. Há momentos em que seguimos, mesmo conscientes do furo, porque é preciso continuar. E há outros em que deixamos o barco descansar, sabendo que o rio, com ou sem nós, continuará a fluir. 

A sabedoria não está na força nem na entrega total, mas no reconhecimento do fluxo: o movimento e a pausa, partes de uma mesma respiração. Quando compreendemos isso, vemos que nunca estivemos sós. Somos feitos daquilo que passa, do que se ancora no presente e no que está por vir. E enquanto houver corrente, haverá continuidade.

fotografia de Miguel Costa. Porto, 2025

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