do silêncio à possibilidade

Há momentos em que o silêncio se impõe. Não por falta de vontade, mas por um cansaço que embarga até o pensamento. Mudanças — mesmo as desejadas — abalam estruturas internas. Algo se desloca do lugar e, com isso, vem o medo, a dúvida, a sensação de estar à deriva — quase tudo parece inadequado.

É como se, por um instante, todos os sentimentos mal acomodados sob a aparência de estabilidade resolvessem emergir ao mesmo tempo. O que parecia sob controle revela-se frágil. Há dias em que não se escreve, não se fala, não se avança.

Nesses momentos, é preciso lembrar: somos cíclicos. Como a lua — cheia, minguante, nova, crescente — passamos também por fases, quartos escuros e claros, dias de luz e de sombra. A vida pulsa em marés, em curvas. E cada transição exige tempo. Exige corpo. É processo. É construção.

E construir exige esforço, persistência, compreensão. Sobretudo quando se trata de construir comunidade, sonho coletivo, pertencimento. É preciso acreditar que algo será possível — e mais: que será possível juntos. Mas como criar esse espaço comum num mundo em que tantas vezes se responde à escuta com ruído, à coragem com rejeição, à diferença com ameaça? Como seguir acreditando quando um sistema que parece falido ainda é o que dita as regras?

É necessário ousadia. É preciso experimentar, reaprender a usar as ferramentas com criatividade, reinventar modos de fazer e, com as mãos que temos, girar as engrenagens da forma que for possível.

Contudo, é preciso fazê-lo com sensibilidade — para falar sem ferir, propor sem esmagar, para que não prevaleça a inveja, a raiva, o orgulho ou o medo de não ser levado em conta.

Talvez aí entre outra escuta, mais profunda. Uma escuta que alinha mente, coração e alma: o que se pensa, o que se sente, o que se sustenta em nós. Quando esses três níveis se encontram, nossas palavras e ações ganham densidade. E, mesmo em silêncio, algo verdadeiro se comunica.

É preciso lembrar que comunidade se constrói, não nasce pronta. Como disse Kobena Mercer:

“Comunidade se tornou uma palavra-chave da vida contemporânea não porque todos vivamos em uma, mas justamente porque a maioria de nós não vive; é a falta que a torna valiosa, é a perda que a torna desejada, é ao imaginá-la que ela se torna real.”

É nesse intervalo entre a falta e o desejo que a comunidade pode, enfim, se revelar como possibilidade.

E há sempre possibilidade.

Lembro de algo que ouvi há mais de duas décadas sobre a força dessa palavra: possibilidade. Um termo aparentemente simples, mas carregado de potência. Possibilidade de imaginar, de mudar rumos, de pensar diferente, de criar futuros. Possibilidade como resistência ao esvaziamento, à estagnação — como ferramenta ou impulso para seguir, mesmo em meio às incertezas.

Possibilidade é, portanto, uma palavra profundamente política. No mundo, há forças que tentam abafar, negar a possibilidade. Por isso, criá-la, vislumbrá-la e levá-la adiante é, em si, um gesto transformador.

Talvez seja por isso que escrevemos — e seguimos criando — mesmo quando parece não haver o que dizer, para quem ou por que dizer. Porque há algo que insiste em se mover, mesmo no silêncio. Algo que resiste. E sonha. E esse algo, por si só, já é um começo.

“Seja o que for que você faça ou sonhe fazer, comece.
A audácia tem força, poder e magia.
Comece agora.” (Goethe)

fotografia de Fernanda Curi, Paris, 2025.

Próximo
Próximo

expandindo ojaskara